“Minha jornada teve início no dia 30 de julho, na cidade de Paraty (RJ). No primeiro dia iria até Picinguaba (SP), mas mudei o trajeto para Trindade (RJ), devido às altas ondas. Aquela foi a remada em condição de risco mais bruta da minha vida. Trabalhei até às 21h na noite anterior e não dormi nada durante o trajeto de Itu (SP) ao Rio de Janeiro, onde viajei com um amigo durante toda a madrugada, e o percurso me fez enjoar bastante. Iria começar o meu desafio às 5h, mas com a maré baixa, decidi começar às 7h.
A minha ideia era fazer algo realmente difícil. Naquele dia, a bordo do surfski V7 (um tipo de caiaque) repleto de mantimentos, roupas e outros itens de sobrevivência, venci a temida Ponta da Joatinga e entendi porque devemos sempre respeitar o mar. Remei pouco mais de 50km sem comer e beber nada, porque não estava me sentindo bem, pelas barreiras de ondas e vento, principalmente porque o mar estava muito tenso. Ao final de cada fim de dia, procurava alguma pousada para descansar, pois uma cama e um chuveiro fariam muita diferença na hora de me recuperar para o próximo dia. Durante a jornada, me alimentava de madrugada e pela manhã a cada duas horas, colocava o celular para despertar para poder me alimentar e me recuperar até entrar no mar. Me hidratava toda hora com pequena quantidade de água.
Fiquei fragilizado durante a noite, ao ponto de não atender o celular. Percebi que não podia fraquejar, mas não me via em qualquer condição de seguir em frente. Somente às duas da manhã, consegui finalmente me alimentar e descansar um pouco. Dormir mesmo era impossível. Sempre ao final de cada dia, já planejava a estratégia para a jornada do dia seguinte, pensando nas dificuldades e na melhor maneira para enfrentá-las.
No segundo dia, de Trindade a Toninhas (SP), ao dar as primeiras remadas, ainda sentia uns tremores, mas o mar tem suas energias. Fui suplementando, me alimentando e ganhando forças, fazendo escolhas inteligentes de rota. Sai muito mais forte da água naquele dia. Foram mais de 40km em pouco mais de meio período de remada. Naquele dia, aproveitei as ondas que quebram na costeira para pegar carona. Eu preferia me equilibrar no surfski do que fazer força, já sabendo que seria um dia de recuperação e que precisava prosseguir.
No terceiro dia, o percurso foi de Toninhas a Ilha Bela (SP). Aquela remada foi fantástica. Decidi arriscar e acertei na loteria ao resolver não costear e seguir mar adentro. Economizei mais duas horas de remada e fiz uma única linha reta. Recuperei parte dos quilômetros que havia deixado de percorrer nos dias anteriores e me preparei bastante para os últimos dias. Remar mar adentro foi uma estratégia, com esperança que a mudança na direção do vento à tarde me levasse de volta à costa.
No quarto dia, o trajeto de Ilha Bela a Bertioga (SP) foi à decisão mais difícil. Tive que arriscar tudo e percorrer de 80 a 90km em um único dia, o que é praticamente impossível para muitos remadores experientes, sabendo que a janela climática favorável iria começar a fechar, foi mesmo. Acordei com uma alergia no corpo todo e só fui me recuperando com banho frio ainda na pousada em que me hospedei. Temia que piorasse e novamente por minutos entrei em desespero. Decidi passar a madrugada de sunga e boa parte da travessia daquele dia, para evitar o contato do tecido com as manchas, aos poucos as placas vermelhas na pele foram cedendo. Iniciei a remada mais exaustiva da minha vida por volta das 7h30. Foram 90km em pouco mais de 14 horas de remada sem parar.
O mar esteve a favor e contra e tive muita dificuldade naquele dia, mas a vontade de completá-lo era maior do que as dificuldades enfrentadas. O vento que soprava noroeste, virou sul, leste, sudeste e a neblina me deixou por muitas horas sem um ponto de referência. Para transpor a Barra do Sahi foi complicado demais e essa costeira não tinha mais fim, tanto que o sol se foi e ainda tinham 28km a seguir sob a luz da lua. Mesmo tomando onda na lateral do V7, sem vê-las, não me daria por vencido.
O último dia, segui destino a Santos (SP). Resolvi fazer aquela travessia pelo rio, acompanhado de mais dois amigos que registraram em fotos aqueles últimos instantes de aventura. Foi um momento de confraternização, de muita alegria e satisfação por concluir com êxito esses dias de jornada. Confesso que saio muito mais forte desta viagem. Aprendi muito, pensei muito, chorei muito, mas agradeci muito também e deixo esse feito para a história do esporte”.
DESAFIO PRA HISTÓRIA
O fisioterapeuta Ricardo Padovan, de 37 anos, é praticante de canoagem há 10 anos, mas em todos esses anos nunca tinha traçado um plano de expedição de quatro dias e meio em alto mar, em um trajeto de 289km feito sem a companhia de ninguém, tanto pelo mar, como pela terra. A vinda de seu filho, agora com pouco mais de seis meses, fez com que os planos mudassem. Com uma gravidez considerada de risco, a esposa de Padovan teve o parto adiantado por um mês e pela saúde do filho, o fisioterapeuta prometeu que se tudo corresse bem, ele faria essa travessia pelo mar.
“Decidi que seria o momento de enfrentar esse desafio, ao mesmo tempo em que eu usaria essa expedição em agradecimento ao nascimento do Arthur”, conta. Ricardo sempre preferiu as remadas longas e pelo mar, com duração de vários dias. A diferença das outras para essa, foi realmente o grau de dificuldade, tanto pela distância percorrida, como pela falta de uma equipe de apoio, onde teve que levar com ele todos os mantimentos que precisaria nesses dias de aventura no mar. Na bagagem, alimentos a vácuo, frutas secas, castanhas e suplementação, composta de whey protein, hipercalórico, polivitamínico, ômega 3 e creatina.
No surfski era acompanhado ainda de um localizador. Ao apertar um simples botão, poderia ser localizado pelas muitas pessoas que acompanhavam de longe sua viagem pelo mar e tinham notícias de seu ‘caminhar’ a cada dez minutos, por satélite. Sua maior preocupação em relação a quem o acompanhava de longe, era que imaginassem que ele corria perigo, então as paradas para descanso dos braços, acontecia por no máximo dois minutos. Enquanto isso, o caiaque se mantinha embalado e ele podia se alimentar, suplementar e se hidratar, quando tudo acontecia muito rápido. A recuperação mesmo, através da alimentação e hidratação, acontecia quando estava nas pousadas e dedicava um tempo maior para essa tarefa.
“Fraquejar nessas horas é impossível”, conta Ricardo, admitindo que o psicológico foi um fator de peso nessa viagem. “Por dias, me vi chorando muito. O medo, a apreensão, o desejo de vencer os obstáculos, todos foram meus companheiros. Venci meus ‘monstros’, fui além e conclui minha missão”, explica. Para concluir esse feito, Ricardo teve meses de preparação.
Durante o tempo de preparação, contou com estudo da metereologia, correntes marítimas, vento e ondas. A preparação física foi feita através de muita remada, no mar e em represas, em treinos aos finais de semana, além de stand up paddle e natação. Como a represa mais próxima fica a 100km da casa de Ricardo, viagens de carro também fizeram parte dessa preparação.
O personal trainer Lineu Leite assinou parte do treino de Padovan, que como fisioterapeuta usou seus conhecimentos para se exercitar. Eram pelo menos três dias de musculação, com ênfase nos membros superiores, principalmente ombros, tronco e costas. Os primeiros meses dos cinco totais, a ênfase foi treinamento de força, depois menos carga e mais repetições, variando de 10, 20 e nos últimos momentos chegou a cinco séries de 100 repetições, no exercício de remada unilateral, para melhorar o equilíbrio da força entre os membros e tornar o intervalo curto, pois enquanto um braço trabalha o outro descansa.
O cardápio foi assinado pela nutricionista Anielle D'Angelo. “Muita gente disse que o que fiz foi loucura, mas a com preparação que tive, posso dizer que o que fiz foi racional. Fui consciente de cada perigo, sabendo como eu poderia agir diante de cada um deles”, conta. Ricardo enfrentou ondas, risco de insolação, correntes marítimas desfavoráveis, rochas, ventos e até a apreensão de se deparar com baleias, o que aconteceu. “Me mantive longe com receio de que o caiaque virasse com a movimentação delas. Nesse tipo de remada, a estratégia é: primeiro manter a média e segundo se deslocar, até o ponto em que a prioridade é a sobrevivência”, diz.
Toda a dificuldade enfrentada nesses dias de desafio, fez com que o fisioterapeuta perdesse 6kg. Nenhuma dificuldade foi motivo de arrependimento. “Levo comigo que: são nas batalhas mais difíceis que conquistamos as maiores vitórias!”, conclui Ricardo. O feito heroico de Ricardo Padovan assombrou a todos os amantes dos esportes náuticos. Um deles é o jornalista Gilmar Domingos de Oliveira, um especialista quando se fala em remo, admite que Padovan coloca a partir de agora seu nome no hall dos grandes canoístas brasileiros.
“Curiosamente, a realização desta expedição coincide com a passagem dos 80 anos de outra iniciativa que também fez história no meio esportivo brasileiro; o Raide Santos – Rio Janeiro realizado por Antonio Rocha, (*1900 – 1961) um dos maiores remadores santistas do século passado, que também percorreu a mesma rota, só que em sentido contrário em 1935”, conta. Segundo Domingos, a expedição de Padovan o feito de Rocha, que executou seu percurso acompanhado de seu irmão e de um jornalista. Já Ricardo encerrou sua travessia sozinho.
BOX:
EXPEDIÇÃO EM NÚMEROS
-289km
-4 dias e meio
-1º dia: 53km em pouco mais de 7 horas
-2º dia: 40km em 7 horas
-3º dia: 71km em 9 horas
-4º dia: 90km em 14 horas
-5º dia: 35km em 6 horas
A cada dia...
-2 scoops de whey protein durante o dia de remo
-500ml de waxy maize
-4 medidas de hipercalórico
-2 cápsulas de polivitamínico
-2 cápsulas Ômega 3
-1 saco de bisnaguinha
-2 barras de proteína
-1 litro de água ou repositor energético
-Algum doce
Durante cada noite...
-500g de castanhas
-500g de mandioca a vácuo
-500g de frango a vácuo, ambos com sal e azeite
-200g de fruta desidratada
-Sardinha em caixinha
Comentários