- Tatiana Camargo Pereira Abrão - Médica Endocrinologista e Nutróloga Especialista em Endocrinologia e Metabologia
- Paulo Cavalcante Muzy - Médico especialista em Ortopedia e Traumatologia
Os transtornos alimentares são caracterizados por uma perturbação persistente na alimentação ou no comportamento relacionado à ingesta alimentar, resultando no consumo ou na alteração da absorção de alimentos e que pode comprometer a saúde física ou o funcionamento psicossocial da pessoa significativamente.
Devido nosso interesse ser voltado para transtornos alimentares mais comuns a partir da adolescência e da vida adulta, vamos nos ater a anorexia nervosa, a bulimia nervosa e ao transtorno de compulsão alimentar.
Os critérios diagnósticos para transtorno de anorexia nervosa, bulimia nervosa e transtorno de compulsão alimentar resultam em um esquema de classificação que é mutuamente excludente, de maneira que, durante um único episódio, podemos atribuir apenas um desses diagnósticos. Apesar de uma série de aspectos comportamentais e psicológicos comuns, os transtornos diferem significativamente em termos de curso clínico, desfecho e necessidade de tratamento.
Alguns indivíduos referem sintomas alimentares semelhantes aos geralmente relatados por indivíduos com transtornos por uso de substâncias psicoativas, como fissura e padrões de uso compulsivo. Essas semelhanças podem refletir o envolvimento dos mesmos sistemas neurais, inclusive os implicados no autocontrole regulatório e de recompensa, em ambos os grupos de transtornos.
Neste módulo abordaremos o diagnóstico de anorexia nervosa:
A anorexia nervosa começa geralmente durante a adolescência ou na idade adulta jovem. Raramente se inicia antes da puberdade ou depois dos 40 anos, porém casos de início precoce e tardio já foram descritos. O início desse transtorno costuma estar associado a um evento de vida estressante, como, por exemplo, deixar a casa dos pais para ingressar na universidade. O curso e o desfecho da anorexia nervosa são altamente variáveis. Indivíduos mais jovens podem manifestar aspectos atípicos, incluindo a negação do ‘medo de gordura’. Indivíduos mais velhos tendem a ter duração mais prolongada da doença e sua apresentação clínica pode incluir mais sinais e sintomas de transtorno de longa data.
A prevalência anual de anorexia entre jovens do sexo feminino é de aproximadamente 0,4%. Pouco se sabe a respeito da prevalência entre indivíduos do sexo masculino, mas o transtorno é bem menos comum no sexo masculino do que no feminino, numa proporção feminino-masculino de aproximadamente 10:1.
Muitos apresentam um período de mudança no comportamento alimentar antes de preencherem todos os critérios para o transtorno. Alguns com anorexia nervosa se recuperam inteiramente depois de um único episódio, alguns exibem um padrão flutuante de ganho de peso seguido por recaída e outros apresentam uma doença crônica ao longo de anos. A hospitalização pode ser necessária para recuperar o peso e tratar complicações clínicas. A maioria dos indivíduos com anorexia nervosa tem remissão dentro de cinco anos depois da manifestação inicial do transtorno. Entre os hospitalizados, as taxas de remissão podem ser menores. A taxa de mortalidade para anorexia é de cerca de 5% por década. A morte é decorrente de complicações clínicas associadas ao próprio transtorno ou de suicídio.
O diagnóstico da anorexia nervosa inclui os critérios A,B e C:
A- Restrição da ingesta calórica em relação às necessidades, levando a um peso corporal significativamente baixo no contexto de idade, gênero, trajetória do desenvolvimento e saúde física. Peso significativamente baixo é definido como peso inferior ao peso mínimo normal ou, no caso de crianças e adolescentes, menor do que o minimamente esperado para a idade.
B- Medo intenso de ganhar peso ou de engordar, ou comportamento persistente que interfere no ganho de peso, mesmo já estando com peso significativamente baixo.
C- Perturbação no modo como o próprio peso ou a forma corporal são vivenciados, influência indevida do peso ou da forma corporal na auto- avaliação ou ausência persistente de reconhecimento da gravidade do baixo peso corporal atual.
A anorexia ainda apresenta dois subtipos, o restritivo e o tipo compulsão alimentar purgativa. No subtipo restritivo, o indivíduo durante os últimos três meses, não se envolveu em episódios recorrentes de compulsão alimentar ou comportamento purgativo, que pode ser por vômitos auto induzidos ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas (para provocar diarreias). Esse subtipo descreve apresentações nas quais a perda de peso seja conseguida essencialmente por meio de dieta, jejum e/ou atividade física excessiva.
Já no tipo compulsão alimentar purgativa, o individuo nos últimos três meses se envolveu em episódios recorrentes de compulsão alimentar purgativa (vômitos auto induzidos ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas).
O nível de gravidade baseia-se, em adultos, no índice de massa corporal (IMC) atual ou, para crianças e adolescentes, no percentil do IMC. Os intervalos abaixo são derivados das categorias da Organização Mundial da Saúde para baixo peso em adultos; para crianças e adolescentes, os percentis do IMC correspondentes devem ser usados. O nível de gravidade pode ser aumentado de maneira a refletir sintomas clínicos, com necessidade de supervisão constante. Dentre os níveis, temos a leve, onde o IMC está maior ou igual a 17 kg/m2, a moderada, com IMC entre 16 a 16,99 kg/m2, a grave com IMC entre 15 a 15,99 kg/m2 e a extrema com IMC menor que 15 kg/m2.
A maioria dos indivíduos com anorexia nervosa do tipo compulsão alimentar purgativa que se envolvem em comportamentos periódicos de hiperfagia, ou seja, de comer demais, também ‘purga’ por meio de vômitos auto induzidos ou faz uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas. Já outros não apresentam episódios de hiperfagia, mas purgam regularmente depois do consumo de pequenas quantidades de alimento.
A alternância entre os subtipos ao longo do curso do transtorno pode ser comum. A anorexia nervosa tem três características essenciais: restrição persistente da ingesta calórica; medo intenso de ganhar peso ou de engordar ou comportamento persistente que interfere no ganho de peso; e perturbação na percepção do próprio peso ou da própria forma. O indivíduo mantém um peso corporal abaixo daquele minimamente normal para idade, gênero, trajetória do desenvolvimento e saúde física (Critério A). O peso corporal dessas pessoas com frequência satisfaz esse critério depois de uma perda de peso importante, porém, entre crianças e adolescentes, pode haver dificuldade em obter o ganho de peso esperado ou em manter uma trajetória de desenvolvimento normal em altura, por exemplo, ao invés de perder peso.
O índice de massa corporal (calculado como o peso em quilogramas dividido pela altura em m2) é uma medida útil para determinar o peso corporal em relação à altura. Para adultos, um IMC de 18,5kg/m2 tem sido empregado pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o limite inferior de peso corporal normal. Dessa forma, a maioria dos adultos com um IMC igual ou acima de 18,5kg/m2 não seria considerada como com baixo peso corporal. Por sua vez, um IMC inferior a 17,0kg/m2 tem sido considerado pela OMS como indicativo de magreza moderada ou grave; portanto, um indivíduo com um IMC inferior a 17,0kg/m2 provavelmente seria considerado com um peso significativamente baixo. Um adulto com um IMC entre 17,0 e 18,5kg/m2, ou até mesmo acima de 18,5kg/m2, poderia ser considerado com um peso significativamente baixo se tiver tido uma perda de peso importante em um período de peso recente.
Para crianças e adolescentes, determinar um percentil de IMC por idade é útil (calcular o percentil de IMC dos CDC para crianças e adolescentes). Os CDC usaram um IMC por idade abaixo do 5º percentil como sugestivo de peso abaixo do normal; entretanto, crianças e adolescentes com um IMC acima desse marco podem ser julgados como significativamente abaixo do peso caso o paciente não tenha tido um crescimento esperado.
Indivíduos com anorexia apresentam medo intenso de ganhar peso ou de engordar (Critério B). Esse medo não costuma ser aliviado pela perda de peso. Na verdade, a preocupação acerca do peso pode aumentar até mesmo se o peso diminuir. Alguns podem não reconhecer ou perceber medo de ganhar peso. Na ausência de outra explicação para o peso significativamente baixo, podem ser usados, para estabelecer o Critério B, a avaliação médica a partir da história fornecida por familiares, parceiros ou pessoas próximas, exames físicos e laboratoriais e sinais clínicos indicando que a falta de ganho de peso seja pelo medo de ganhá-lo, e pelos comportamentos envolvidos nisso.
A pessoa tem distorção do peso e da forma corporal (Critério C). Alguns sentem-se completamente acima do peso. Outros percebem que estão magros, mas ainda assim se preocupam com determinadas partes do corpo, relatando gordura localizada no abdome, nos glúteos e no quadril. Realizam pesagens frequentes, medição obsessiva das partes do corpo e se olham no espelho para checar áreas de ‘gordura’. A estima destes indivíduos é dependente de suas percepções da forma e do peso corporal.
A perda de peso é, com frequência, vista como uma conquista marcante e um sinal de autodisciplina extraordinária, enquanto o ganho é percebido como falha de autocontrole e fracasso. Embora alguns indivíduos com esse transtorno talvez reconheçam que estão magros, frequentemente não assumem as graves implicações médicas de seu estado de desnutrição.
Geralmente, o indivíduo é levado à atenção profissional por familiares depois de terem tido importante perda de peso. Se buscam ajuda por si mesmos, costuma ser pela angústia da falta de alimentação e por motivos psicológicos.
É, portanto, importante obter informações de familiares, parceiros e pessoas próximas para avaliar a história da perda de peso e outros dados importantes para diagnosticar a doença.
A anorexia nervosa e os comportamentos purgativos às vezes associados a ela podem causar problemas de saúde potencialmente fatais. Enquanto grande parte das alterações associadas à desnutrição podem ser revertidas com terapia nutricional adequada, algumas, incluindo a perda de massa óssea, podem não ser reversíveis.
Pessoas com anorexia apresentam sinais e sintomas depressivos, como humor deprimido, isolamento social, irritabilidade, insônia e diminuição da libido. Estes sintomas podem ser secundários às sequelas fisiológicas da desnutrição, embora também possam ser graves o suficiente para justificar um diagnóstico adicional de transtorno depressivo.
A maioria dos indivíduos com anorexia nervosa pode ter características obsessivo-compulsivas, centrada na preocupação com os alimentos. Alguns colecionam receitas e estocam comida.
Outros aspectos por vezes associados à anorexia nervosa incluem angústia de alimentar-se publicamente, sentimentos de fracasso, forte desejo por controlar o próprio ambiente, pensamentos inflexíveis, espontaneidade social limitada e expressão emocional excessivamente contida. Ainda, pessoas com anorexia do tipo compulsão alimentar purgativa apresentam taxas maiores de impulsividade e tendem a abusar mais de álcool e de outras drogas.
Vários indivíduos com anorexia nervosa praticam níveis excessivos de atividade física, sendo que muitas vezes o aumento na frequência de exercícios antecede a instalação do transtorno, e, durante o curso da doença, a atividade física mais intensa acelera a perda de peso. Durante o tratamento, talvez seja difícil controlar o excesso de atividade física, prejudicando, assim, a recuperação do peso.
Indivíduos com anorexia podem fazer uso indevido de medicamentos, como, por exemplo, manipular a dosagem para conseguir perder peso ou evitar ganhá-lo. Aqueles com diabetes mellitus podem omitir ou reduzir as doses de insulina a fim de perder peso, prejudicando o metabolismo de carboidratos, ainda correndo risco de vida.
Alguns fatores podem predispor ao aparecimento da doença, como:
Temperamentais: Indivíduos que desenvolvem transtornos de ansiedade ou exibem traços obsessivos na infância tem maior risco de desenvolver anorexia nervosa.
Ambientais: Ocupações e trabalhos que incentivam a magreza, como modelo, nutricionista, atleta de elite, ginastas olímpicos, dançarinas e bailarinas, também estão associados a um risco maior.
Genéticos e fisiológicos: Existe risco maior de anorexia e bulimia entre parentes biológicos de primeiro grau de indivíduos com o transtorno, incluindo gêmeos idênticos.
Podemos ter alterações clínicas nos indivíduos com anorexia, como baixos glóbulos brancos, anemia leve, baixa quantidade de plaquetas, e mais raramente sangramentos.
Eles podem estar mais desidratados, com alterações na ureia, colesterol elevado, enzimas do fígado elevadas, eletrólitos baixos pela falta de alimentação e/ou vômitos e laxantes (magnésio, zinco, fosforo, cálcio, cloro e potássio); os hormônios tiroidianos podem estar baixos, para diminuir o metabolismo corporal, sendo o gasto metabólico em repouso do anoréxico diminuído. Nas mulheres, o estradiol pode estar baixo e nos homens, a testosterona pode estar baixa.
Pode haver alterações no ritmo cardíaco, como bradicardia (batimentos abaixo do normal) e outras arritmias. Como já citado, podemos ter baixa massa óssea, inclusive osteopenia e até osteoporose, elevando o risco de fraturas.
As mulheres podem apresentar amenorreia e pode ser indicador de disfunção fisiológica, pela perda de peso, porém, em uma minoria dos indivíduos, ela pode, na verdade, anteceder a perda de peso. Em meninas pré-púberes, a menarca pode ser atrasada ou não acontecer. Pode ainda haver queixas de constipação (prisão de ventre), dor abdominal, intolerância ao frio, cansaço e dificuldade de raciocínio. Pode ter também hipotensão (pressão baixa) e hipotermia.
O risco de suicídio é elevado na anorexia, com taxas de 12 por 100.000 por ano. A avaliação psicológica e psiquiátrica de indivíduos com anorexia nervosa deve incluir a determinação de ideação e comportamentos suicidas, bem como de outros fatores de risco para suicídio, incluindo história de tentativa(s) de sucídio, comuns e geralmente omitidas pelo paciente .
A importância de um tratamento correto e sério da anorexia nervosa inclui uma equipe multidisciplinar contando com médico psiquiatra, psicólogo, médico endocrinologista e/ou nutrólogo e nutricionista. Alguns pacientes permanecem ativos no funcionamento social e profissional, e outros demonstram isolamento social significativo e/ou fracasso em atingir o nível acadêmico ou profissional potencial. Toda equipe deve trabalhar e acompanhar o paciente até a remissão parcial e completa do transtorno. Nos próximos módulos, abordaremos a bulimia nervosa e o transtorno de compulsão alimentar. O diagnostico da doença tem que ser feito por um médico, mas o acompanhamento do transtorno é multidisciplinar.
Comentários