Você já ouviu falar em vigorexia? Apesar de ser um termo pouco conhecido, trata-se de uma doença muito comum, principalmente na atualidade, já que a mídia exerce forte influência sobre os rígidos padrões de beleza estabelecidos e considerados como ideais pela sociedade. O nome científico da vigorexia é ‘Transtorno Dismórfico Muscular’ que consiste na distorção em relação à percepção da autoimagem. O termo ‘dismorfia’ é usado para designar a diferença entre aquilo que a pessoa acredita e enxerga sobre a sua imagem física e aquilo que ela realmente é. Desta forma, a vigorexia resulta na prática excessiva do esporte devido a uma preocupação obsessiva com a aparência física e a preocupação em excesso com a figura é acompanhada por uma distorção do esquema corporal. Os pacientes têm obsessão não apenas pelo exercício, mas também pela maneira como se alimentam. Não é a toa que trata-se de uma enfermidade classificada como uma das manifestações do espectro do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).
“Enquanto classificação dos Transtornos Mentais mais aceita em todo o mundo, a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM V), de autoria da Associação Americana de Psiquiatria (APA), classifica os transtornos dismórficos corporais em padrão semelhante ao dos transtornos obsessivos-compulsivos e têm sido crescentes as evidências de relação desses transtornos entre si”, enfatiza o psiquiatra Fábio Coelho Neto.
De acordo com a psicóloga Andréa Chaves, obsessões são pensamentos, impulsos ou imagens mentais recorrentes, intrusivos e desagradáveis que causam ansiedade ou mal-estar relevantes ao indivíduo, tomam tempo e interferem negativamente em suas atividades e/ou relacionamentos. As obsessões causam desconforto emocional e os rituais compulsivos – sempre excessivos, irracionais ou mágicos – tendem a aliviá-lo, mas não são prazerosos.
“A vigorexia também é conhecida como dismorfia muscular, síndrome de Adônis e anorexia nervosa reversa. As principais semelhanças entre esta e a anorexia nervosa são: a visão distorcida do corpo, busca por um padrão de beleza ilusório e prática excessiva de exercícios físicos. Uma das diferenças é o sexo mais afetado com os distúrbios: enquanto homens sofrem mais de vigorexia, as mulheres sofrem mais de anorexia. Ambos transtornos podem ser causados por desequilíbrio químico no cérebro, sendo assim, a maior mudança está no objeto do medo: enquanto um teme ganhar peso, o outro teme perder massa muscular. Como o corpo que consideram perfeito é um ideal inatingível, em razão dos sentimentos de inferioridade e da visão deformada da própria aparência, essas pessoas estão mais sujeitas a desenvolver quadros de depressão e ansiedade”, explica Andréa Chaves.
Quanto aos sintomas, o psiquiatra Fábio Coelho Neto ressalta que essa preocupação excessiva apresentada pelos pacientes, dá subsídio para o surgimento de comportamentos repetitivos, como exemplo arrumar-se excessivamente, contrair a musculatura inúmeras vezes em frente ao espelho, aferir medidas musculares com frequência exagerada, esforço físico intenso e de frequência além do tolerável, uso constante de substâncias danosas à saúde ou atos mentais repetitivos como comparar a própria aparência muscular com a de outra pessoa em resposta às preocupações com a aparência.
“Os comportamentos repetitivos e intensos expõem o indivíduo a um sofrimento psíquico e limitam atividades diárias das mais diversas, não ligadas à aparência, mas que são importantes. A dedicação excessiva demanda tempo, recursos financeiros, energia física e consumo da saúde. Pode haver diferenças no padrão das compulsões entre homens e mulheres, principalmente com base em aspectos culturais. Por exemplo, as mulheres podem optar por treino aeróbico durante horas ao dia, enquanto homens podem se voltar mais para exercícios de força intensa. Mas, em todos eles há a percepção exacerbada em relação à estrutura física muscular enquanto subsídio para comportamentos compulsivos”, diz o especialista.
Dr. Fábio Coelho conta ainda, que o diagnóstico da vigorexia é realizado por meio de consulta médica, em que se busca correlação entre a interpretação da pessoa sobre seu próprio corpo, a intensidade dos esforços para atingir a estrutura física desejada e o quanto tais fatores interferem de forma expressiva na rotina e o impedem de realizar outras atividades importantes, já que é comum o paciente focar seus pensamentos nesses aspectos durante a maior parte do dia
O QUE PODE DESENCADEAR A VIGOREXIA?
A psicóloga Andréa Chaves esclarece que podem ser diversos os motivos pelos quais um indivíduo desenvolve a vigorexia, no entanto, sabe-se que suas causas estão bastante relacionadas à visão de si mesmo que a pessoa possui. Segundo ela, há uma linha de pesquisadores que acreditam que a vigorexia poderia ser um distúrbio genético ou ainda ser causada por um desequilíbrio químico no cérebro. Outros estudos mostram que experiências de vida também podem ser um fator para desencadear a vigorexia e que esse distúrbio pode ser mais comum em pessoas que foram perseguidas, maltratadas ou abusadas quando eram jovens. “Entre os portadores de vigorexia, no entanto, há pessoas que procuram apenas a silhueta perfeita por influência da mídia e por pressão dos padrões culturais do seu meio e acabam indo longe demais. Há também os esportistas e os competidores que querem ser os melhores, exigindo obsessivamente de seus corpos. Além disso, é muito comum que as pessoas tentem alcançar um padrão estético desconsiderando o próprio biotipo e esse hábito pode trazer frustração, fazendo com que se enxerguem de forma inferior às outras. Neste caso, a vigorexia também pode ocorrer como uma resposta aos sentimentos de depressão e falta de autoestima, o que impede que a pessoa assuma que tem o transtorno, pois é como se a vigorexia representasse, para o indivíduo, a ‘cura’ desses sentimentos depressivos. Sem contar que existe a validação social, ou seja, em alguns momentos os pacientes ficam aparentemente bonitos e isso deturpa o padrão de doença”, destaca Andréa.
Reforçando essa questão, o psiquiatra Fábio Coelho também acredita que as causas são multifatoriais, envolvendo predisposição genética e fisiológica – a prevalência de transtorno dismórfico corporal é elevada em parentes de primeiro grau de indivíduos com TOC – além de fatores ambientais e histórico de vida do indivíduo. “O transtorno dismórfico corporal foi associado a altas taxas de negligência e abuso infantil. Acomete principalmente adolescentes e adultos jovens, fases em que há mudanças corporais expressivas e uma busca por engajamento social, bem como a aceitação. Há ainda um aumento da ansiedade nesse período por múltiplos estímulos e demandas do estilo de vida, fases em que o indivíduo desempenha maior quantidade de papeis sociais simultâneos”, complementa o médico.
“Embora seja mais comum em homens, a vigorexia também acomete mulheres. Em geral, atinge mais jovens entre 18 e 35 anos, mas não se limita a essa faixa etária. Também vale ressaltar a importância que a mídia tem ao influenciar o ideal de corpo, fazendo com que pessoas não se aceitem como são e persigam esse ideal, muitas vezes intangíveis e por meios pouco salutares, como treinos e dietas não adequados”, aponta o educador físico Rafael Souza Oliveira.
Outro ponto levantado pela psicóloga Andréa Chaves, é que a vigorexia pode levar ao ‘overtraining’, um problema que ocorre quando o atleta faz mais exercícios do que seu corpo é capaz de se recuperar e tem como sintomas fadiga constante, alterações no sono e no humor, irritação, falta de concentração, queda da libido e maior propensão a lesões. “A obsessão pelo corpo perfeito produz mudanças importantes nos hábitos alimentares, nas atitudes, na autoestima, na saúde e nas relações sociais de quem sofre de vigorexia. Todas as ações dos vigoréxicos estão voltadas para o cuidado com o corpo. Eles tendem a restringir a sua dieta a nutrientes destinados somente a constituição dos músculos, causando desequilíbrio de nutrientes e prejudicando a saúde geral do corpo, como a sobrecarga do fígado”, explica a psicóloga.
O educador físico Rafael Oliveira também alerta para consequências que podem ser geradas por essa doença. De acordo com o profissional, o excesso de treinamento pode causar fadigas (cansaço excessivo devido ao volume de treinamento), danos no músculo esquelético (lesões nos músculos, ligamentos, tendões, articulações e ossos devido ao excesso de carga ou tempo de treino), danos ao miocárdio (hipertrofia ou crescimento do músculo cardíaco devido ao tipo de treinamento), distúrbios de sono (o excesso de exercícios, embora canse fisicamente pode deixar a mente muito ativa, devido às descargas de adrenalina no corpo) e até mesmo transtornos alimentares, já que essa obsessão pela forma física pode vir acompanhada de hábitos alimentares não tão saudáveis. Além de tudo isso, é comum que pessoas com esse distúrbio apelem para esteroides anabólicos, que podem trazer uma série de complicações para a saúde e levar à morte”, expõe o personal trainer.
De acordo com a nutricionista Fernanda Alferes, os portadores de vigorexia costumam fazer uso abusivo de suplementos alimentares e anabolizantes, porque buscam resultados rápidos e acreditam que somente com a alimentação não conseguirão chegar onde querem. “As consequências do uso dos anabolizantes são várias, dentre elas o aumento de acne, queda de cabelo, distúrbios da função do fígado, tumores no fígado, comportamentos agressivos, alucinações, aumento da pressão, coágulo no sangue e paranoia. Por isso, é fundamental procurar um nutricionista em busca de orientação. É preciso ter uma alimentação equilibrada e suspender o uso de anabolizantes”, elucida a nutri.
TRATAMENTOS
Segundo o psiquiatra Fábio Coelho, o tratamento se dá por meio de terapias e medicamentos focados em sintomas, principalmente os ansiosos, que podem favorecer a manifestação do transtorno.
A seguir, a psicóloga Andréa Chaves destaca alguns hábitos saudáveis que podem contribuir com o tratamento da doença:
Dieta equilibrada de nutrientes e vitaminas necessárias para o corpo, com a orientação de um nutricionista;
Supressão de esteroides anabolizantes;
Psicoterapia para entender o aspecto comportamental do indivíduo e sua percepção distorcida da realidade;
Uso de medicamentos para controlar a ansiedade, o comportamento compulsivo, para reduzir o estresse e a obsessão em exercitar-se.
A pessoa não precisa abandonar totalmente a prática de exercícios, mas o treinamento deve ser orientado por profissionais com experiência na área.
“Além disso, é importante integrar grupos de ajuda e grupos sociais diferentes dos que reforçam o padrão de comportamento existente. Dentro das abordagens terapêuticas, vou falar da que uso em consultório, a terapia cognitivo-comportamental. Sua metodologia tem por base a identificação de padrões vistos de maneira distorcida em relação à percepção da imagem corporal. Ela identifica aspectos positivos da aparência física e confronta padrões inatingíveis e atingíveis. Como manejo terapêutico, busca-se estratégias de inibir atitudes compulsivas relacionadas ao exercício, como checagem do grau de musculatura e dietas. O paciente precisa ser encorajado gradativamente a enfrentar seu medo de expor o corpo. Como manejo biológico, uma análise com um psiquiatra pode introduzir medicações que atuam como inibidores da recaptação de serotonina, que podem diminuir aspectos como compulsividade e obsessão dos pacientes e como manejo de crenças, vincular o paciente à sua identidade e dar sentido à sua vida, contribui bastante para ele conseguir permanecer no tratamento. Ajudá-lo a encontrar um ‘lugar emocional’ em que ele possa ser quem ele é, independentemente de corpo. Em quadros graves, a cura pode demorar mais tempo e existem riscos de recaídas. Não é possível ajustar prazo, pois depende também do envolvimento do paciente com o processo de tratamento”, explica a psicóloga Andréa Chaves.
O educador físico Rafael Souza Oliveira evidencia que a solução não está necessariamente no fato da pessoa deixar de exercitar-se, mas sim de entender e aceitar que ela tem um problema e que necessita de tratamento médico e psicológico. “Não são os exercícios em si que são benéficos ou maléficos para essa patologia, mas sim o cuidado com o treinamento para evitar exageros. O profissional de educação física pode contribuir mostrando dados, estudos e avaliando o vigoréxico, além de auxiliá-lo no treinamento para que não exagere e nem se machuque. Avaliar, prescrever o treinamento e dar um acompanhamento adequado é o melhor que podemos fazer”, argumenta Rafael Oliveira.
Os especialistas chamam a atenção ainda para as diversas consequência mais graves, caso a vigorexia não seja corretamente tratada. A psicóloga Andréa conta que a falta de cuidados pode causar complicações severas, algumas delas são: insuficiência renal ou hepática, problemas de circulação, risco de doenças cardiovasculares, depressão, aumento do risco de câncer de próstata (homens) e de infertilidade (mulheres), além do distanciamento do convívio social.
O psiquiatra Fábio Coelho completa: “As compulsões, nas suas mais diversas formas, podem tanto expor o indivíduo a um dano direto à saúde e ao risco de morte, quanto consumir recursos de vida do indivíduo – como financeiros, tempo, dedicação – e frequentemente gera rupturas sociais, acadêmicas e laborais”, diz.
A psicóloga Andréa Chaves lembra também, que uma das maiores dificuldades dos pacientes com vigorexia é admitir que apresentam o transtorno, já que acreditam que não há nada de errado com seu comportamento. Semelhante ao que ocorre com os anoréxicos, eles raramente se veem como tendo um problema e não são susceptíveis a iniciar o tratamento, por isso precisam contar com o apoio das pessoas que estão ao seu redor. Durante o processo de tratamento é preciso que haja uma aproximação do paciente para ajudá-lo a mudar a perspectiva pela qual ele enxerga o seu próprio corpo, o apoio incondicional da família em cada etapa para garantir o objetivo principal que é manter a sua saúde e reconstruir a sua autoestima.
“Temos uma vida biológica, psicológica, social e espiritual e cuidar desses quatro pilares é fundamental. O padrão do corpo tem influências biológicas e as pessoas precisam saber quem são, se permitirem ser quem de fato nasceram para ser. Não se violentar, se olhar e se amar ao ponto de ‘se chamar para dançar’, torna a vida mais leve e mais produtiva”, finaliza a psicóloga.
FONTES CONSULTADAS
Andréa Chaves: Psicóloga. Mestre em Psicologia, consultora e psicóloga da Secretária de Saúde do Governo do Distrito Federal, atualmente lotada no Núcleo de Saúde Mental do SAMU - Instrutora do Núcleo de Urgências e Emergências Pré- hospitalar.
Fábio Coelho Neto: Psiquiatra. Graduado em medicina pela Escola Superior de Ciências da Saúde. Possui pós-graduação em Atendimento na Atenção Básica pelo Ministério da Saúde e residência médica em psiquiatria pelo Hospital das Forças Armadas-DF. É membro associado da Associação Brasileira de Psiquiatria e atua em atendimentos emergenciais no Núcleo de Saúde Mental (NuSam) do SAMU-DF.
Fernanda Alferes: Nutricionista graduada pela Universidade Nove de Julho, especializada em controle de qualidade, possui experiência em clínicas, restaurantes e distribuidores de alimentos. Atualmente, na Uni Alimentos é responsável pelo controle de qualidade, orientação e treinamento de funcionários atuantes nas atividades relacionadas aos serviços de alimentação.
Rafael Souza Oliveira: Formado em Educação Física pela UEL (Universidade Estadual de Londrina - 2005), especializando em Saúde Pública com ênfase em Saúde da Família pela UNOPAR (Universidade Norte do Paraná), Supervisor Técnico da Unidade Limão da rede Selfit Academias, atleta amador de Futebol Americano pelo Brasil Devilz.
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