- Tatiana Camargo Pereira Abrão - Médica Endocrinologista e Nutróloga Especialista em Endocrinologia e Metabologia
- Paulo Cavalcante Muzy - Médico especialista em Ortopedia e Traumatologia
A bulimia é a segunda doença que iremos abordar neste módulo de transtornos alimentares e pode acometer cerca de 1 a 1,5% da população, sendo mais prevalente no sexo feminino, na proporção feminino/masculino de 10:1. Ocorre mais no fim da adolescência e início da vida adulta, sendo incomum sua ocorrência na puberdade e após os 40 anos. Ela caracteriza-se por consumo compulsivo de alimentos seguido de intenso sentimento de culpa e medo de engordar, que levam o paciente a tentar se livrar rapidamente das calorias consumidas, atitude que é chamada de comportamento purgativo ou compensatório inapropriado.
A forma mais comum de purgação é através de vômitos induzidos, mas ela pode ocorrer também pelo consumo excessivo de diuréticos, laxantes, ou medicamentos inibidores de apetite. Ainda podem fazer parte do comportamento compensatório períodos de jejum prolongado, dietas muito restritivas, prática exagerada de atividade física ou qualquer outra atitude que tenha como objetivo impedir o ganho de peso. Segundo o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais-5 (DSM-5), existem três aspectos essenciais na bulimia nervosa: episódios recorrentes de compulsão alimentar (Critério A), comportamentos compensatórios inapropriados recorrentes para impedir o ganho de peso (Critério B) e auto-avaliação indevidamente influenciada pela forma e pesos corporais (Critério D). Para se qualificar ao diagnóstico, a compulsão alimentar e os comportamentos compensatórios inapropriados devem ocorrer, em média, no mínimo uma vez por semana por três meses (Critério C).
São estes critérios:
A - Episódios recorrentes de compulsão alimentar, onde a compulsão é caracterizada pela:
A.1- Ingestão em um período de tempo determinado (por exemplo dentro de cada período de duas horas), de uma quantidade de alimento definitivamente maior do que a maioria dos indivíduos consumiria no mesmo período sob circunstâncias semelhantes (por exemplo, um pacote inteiro de bolacha ou um bolo inteiro),
A.2- Sensação da falta de controle sobre a ingestão durante o episódio (por exemplo, sentimento de não conseguir parar de comer ou controlar o que e o quanto se está ingerindo).
B. Comportamentos compensatórios inapropriados recorrentes a fim de impedir o ganho de peso, como vômitos auto induzidos; uso indevido de laxantes, diuréticos ou outros medicamentos; jejum; ou exercício em excesso.
C. A compulsão alimentar e os comportamentos compensatórios inapropriados ocorrem, em média, no mínimo uma vez por semana durante três meses.
D. A auto avaliação é indevidamente influenciada pela forma e peso corporais.
E. A perturbação não ocorre exclusivamente durante episódios de anorexia nervosa.
De acordo com o nível de gravidade, a bulimia pode ser leve ( em torno de 1 a 3 episódios de comportamentos compensatórios inapropriados por semana), moderada (de 4 a 7 episódios por semana), grave (de 8 a 13 episódios por semana, ou extrema (de 14 ou mais comportamentos por semana).
Não sabemos exatamente por que a bulimia surge. Provavelmente, ela é resultado de múltiplos fatores genéticos, psicológicos e sociais. Geralmente a compulsão alimentar surge após uma dieta para perder peso.
Algumas características tornam o indivíduo mais propenso a ter bulimia, como ter história familiar de transtorno alimentar, ter tido maturação puberal precoce e ter sido uma criança obesa ou com sobrepeso. Indivíduos que sofreram abuso sexual ou físico na infância também apresentam um risco maior de desenvolver o transtorno.
Se a pessoa for mais sensível e influenciável a pressões sociais ou da mídia, em relação ao tipo físico mais apropriado, ou ter uma carreira profissional que exija um corpo magro, como nutricionista, educador físico, atleta, ator, dançarino e modelo, ela pode predispor o indivíduo a desenvolver o transtorno, ainda mais se ele já tiver traços de baixa autoestima, depressão, ansiedade, comportamento impulsivo, perfeccionismo ou transtorno obsessivo-compulsivo.
Uma ocorrência de consumo excessivo de alimento (Critério A1) deve ser acompanhada por uma sensação de falta de controle (Critério A2) para ser considerada um episódio de compulsão alimentar.
Um indicador de perda de controle é a incapacidade de abster-se de comer ou de parar de comer depois de começar. O tipo de alimento consumido durante episódios de compulsão alimentar varia tanto entre diferentes pessoas quanto em um mesmo indivíduo. A compulsão alimentar parece ser caracterizada mais por uma anormalidade na quantidade de alimento consumida do que por uma fissura por um nutriente específico. Entretanto, durante episódios de compulsão alimentar, os indivíduos tendem a consumir alimentos que evitariam em outras circunstâncias.
Indivíduos com bulimia nervosa em geral sentem vergonha de seus problemas alimentares e tentam esconder os sintomas (por exemplo, parar se um amigo ou o cônjuge entrar inesperadamente no local onde a pessoa está comendo).
A compulsão alimentar normalmente ocorre em segredo ou da maneira mais discreta possível. Com frequência o indivíduo continua comendo até que esteja desconfortável ou até mesmo dolorosamente cheio. O antecedente mais comum da compulsão alimentar é o afeto negativo. Outros gatilhos incluem fatores de estresse interpessoais; restrições dietéticas; sentimentos negativos relacionados ao peso corporal, à forma do corpo e a alimentos; e tédio.
A compulsão alimentar pode minimizar ou aliviar fatores que precipitam o episódio a curto prazo, mas a auto avaliação negativa e a disforia com frequência são as consequências tardias.
Outro aspecto essencial da bulimia nervosa é o uso recorrente de comportamentos compensatórios inapropriados para impedir o ganho de peso, conhecidos coletivamente como comportamentos purgativos, ou purgação (Critério B). Muitos indivíduos com bulimia nervosa empregam vários métodos para compensar a compulsão alimentar.
Vomitar é o comportamento compensatório inapropriado mais comum. Os efeitos imediatos dos vômitos incluem alívio do desconforto físico e redução do medo de ganhar peso.
Indivíduos com bulimia nervosa podem usar uma variedade de métodos para induzir o vômito, incluindo o uso dos dedos ou instrumentos para estimular o reflexo do vômito. Geralmente se tornam peritos em induzir vômitos e acabam conseguindo vomitar quando querem. Raramente, consomem xarope de ipeca para induzir o vômito. Outros comportamentos purgativos incluem o uso indevido de laxantes e diuréticos. Podem inclusive usar enemas após episódios de compulsão alimentar, mas raramente este é o único mecanismo compensatório empregado. Ainda podem tomar hormônios tiroidianos e remédios anorexígenos em uma tentativa de evitar o ganho de peso.
Indivíduos com diabetes melittus tipo 1 e bulimia nervosa podem omitir ou diminuir doses de insulina a fim de reduzir a metabolização do alimento consumido durante episódios de compulsão alimentar (diabulimia). Outros ainda podem jejuar por um dia ou mais ou se exercitar excessivamente na tentativa de impedir o ganho de peso.
O exercício pode ser considerado excessivo quando interfere de maneira significativa em atividades importantes, quando ocorre em horas inapropriadas ou em contextos inapropriados ou quando o indivíduo continua se exercitando mesmo lesionado ou com algum problema de saúde.
Sempre enfatizam de forma excessiva a forma ou o peso do corpo em sua auto avaliação e esses fatores são extremamente importantes para determinar sua autoestima (Critério D). Eles podem lembrar muito os portadores de anorexia nervosa pelo medo de ganhar peso, pelo desejo de perder peso e pelo nível de insatisfação com o próprio corpo. Entretanto, um diagnóstico de bulimia nervosa não deve ser dado quando a perturbação só ocorrer durante episódios de anorexia nervosa (Critério E).
Pessoas com bulimia nervosa estão geralmente dentro da faixa normal de peso ou com sobrepeso (IMC > 18,5kg/m2 e < 30 em adultos). O transtorno ocorre, mas é incomum, entre indivíduos obesos. Entre os episódios de compulsão alimentar, indivíduos com bulimia nervosa costumam restringir seu consumo calórico e optam, de preferência, por alimentos hipocalóricos (‘dietéticos’), ao mesmo tempo que evitam alimentos que percebem como hipercalóricos ou com potencial para desencadear compulsão alimentar.
Mulheres com bulimia podem ter irregularidade menstrual ou amenorreia, mas não está claro se tais perturbações estão relacionadas a oscilações no peso, a deficiências nutricionais ou a sofrimento emocional.
Os distúrbios hidroeletrolíticos decorrentes do comportamento purgativo são por vezes graves o suficiente para constituírem problemas clinicamente sérios. Complicações raras, porém, fatais incluem lacerações esofágicas, ruptura gástrica, arritmias cardíacas, e problemas relacionados ao consumo de xarope de ipeca para induzir vômito, como problemas na musculatura esquelética e cardíaca. Ainda o abuso crônico de laxantes pode tornar o intestino dependente do seu uso para estimular a defecação.
Na inspeção da boca pode-se observar perda significativa e permanente do esmalte dentário devido aos vômitos recorrentes. Esses dentes podem lascar ou parecer desgastados, corroídos e esburacados. A frequência de cáries dentárias também pode ser maior.
As glândulas salivares, principalmente as glândulas parótidas, podem ficar hipertrofiadas. Indivíduos que induzem vômitos estimulando manualmente o reflexo de vômito podem desenvolver calos ou cicatrizes na superfície dorsal da mão pelo contato repetido com os dentes (Sinal de Russel).
A mudança diagnóstica de bulimia nervosa inicial para anorexia nervosa ocorre em uma minoria dos casos (10 a 15%). Indivíduos que evoluem para anorexia nervosa comumente reverterão para bulimia nervosa ou terão múltiplas ocorrências de alternâncias entre esses dois transtornos.
O risco de suicídio é alto na bulimia nervosa. A avaliação completa de indivíduos com esse transtorno deverá incluir determinação de ideação e comportamentos suicidas, bem como outros fatores de risco para suicídio, incluindo história de tentativas de suicídio.
Além disso, a associação da bulimia com outros transtornos psiquiátricos é extremamente comum, sendo que 95% dos pacientes bulímicos apresentam associação a uma doença, e até 64% apresentam três ou mais patologias psiquiátricas associadas. Dentre as doenças psiquiátricas mais associadas a bulimia, temos depressão, fobia, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de ansiedade social (fobia social), transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, transtorno desafiador opositivo, consumo de drogas ilícitas, abuso de álcool, abuso de estimulantes (muitas vezes como tentativa de controlar o peso e o apetite) e perturbação disfórica pré-menstrual.
O diagnóstico deve ser feito preferencialmente por um médico especialista (psiquiatra), pois existe diagnóstico diferencial de algumas doenças psiquiátricas (anorexia, depressão, transtorno de compulsão alimentar, transtorno de personalidade borderline e outros). O tratamento da bulimia inclui uma equipe multidisciplinar.
No próximo módulo, abordaremos o transtorno de compulsão alimentar.
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